Bicentenário da expedição de Maximiliano de Wied-Neuwied: de Campos a S.Fidélis

rio antigo 3
Fotos: SF Notícias

A sete de outubro de 1815, a expedição científica de Maximiliano de Wied-Neuwied parte para São Fidélis. Já existia então um caminho pela margem direita do Paraíba do Sul que ligava Campos a Cantagalo, em 1850, trilhado pelo conterrâneo do príncipe e também naturalista Hermann Burmeister. Só que do Rio de Janeiro, subindo e descendo a Serra do Mar e seguindo pelo Rio Pomba até a região das Minas Gerais.

No caminho, Maximiliano fornece informações sobre o Paraíba do Sul colhidas em outros autores: “…continua o trajeto através de florestas virgens, entre margens pedregosas, até que, por fim, penetra, já próximo da foz, nas planícies dos índios Goitacás”. Seu relato diz: “Nosso caminho seguia, a princípio, ao longo do rio, cujas margens eram cobertas de capoeiras de belas mimosas, bignônias e outras árvores análogas. Erguiam-se, perto da vila, altos coqueiros solitários: vinham, depois, campos e matagais entre ‘fazendas’ isoladas. Cedo perdemos de vista o rio, de que se afastou do caminho. Vimos frequentemente, nos campos, em companhia do anum preto e do cuco pintado, um ‘anum branco’ dos portugueses, que é muito semelhante ao primeiro na forma e na maneira de viver. Essa ave, a que Azara dá o nome de ‘piririgua’, havia pouco tempo que era conhecido nas cercanias de Campos, dizendo-se que descera, nos últimos anos, dos planaltos de Minas às baixadas da costa.” Para um ornitólogo, esta informação tem valor histórico.

O grupo passa por canaviais, extensas campinas, pastagens de bois, cavalos e burros. Grandes figueiras impressionam o naturalista, que tece considerações sobre ela pelo mundo. Ele escreve, sempre no seu estilo prolongado e lento: “As montanhas começam algumas léguas além de S. Salvador; uma vez transpostos os canaviais, contemplamos à distância as altaneiras florestas (…) Depois de caminharmos cerca de três léguas, atingimos de novo as margens do Paraíba, que eram, nesse ponto, de admirável beleza. Três ilhas, parcialmente cobertas por imponentes árvores seculares, interrompiam-lhe a superfície. O rio, de largura não inferior à do Reno, corre com rapidez, e em suas margens se intercalam colinas verdejantes, cobertas de florestas e cerrados…” A comparação do Paraíba do Sul com o Reno é muito comum entre os naturalistas europeus que o conheceram.

Já na zona serrana ao lado da Serra do Mar, ele registra: “Da beira do rio subimos escarpada montanha, o Morro do Gambá, cavalgamos-lhe o dorso dentro de espessa mataria, e, quando a deixamos, vimos embaixo, surpresos, um magnífico trecho do rio. Entre picos silvestres, altaneiros e alcantilados, destacava-se o cume rochoso do Morro da Sapateira, de forma particularmente curiosa; e o contraste que fazia com as colinas verdes e risonhas, onde os habitantes ergueram as alegres moradas, aumentava o encanto da paisagem.1 Bem sob os nossos pés, debaixo de uma rocha a pique, ficava uma pequena planura à beira do rio, onde algumas casas ensombradas por coqueiros formavam um cenário encantador. A trilha estreita seguia ao longo do abrupto despenhadeiro até considerável altura, para de novo descer ao vale, onde o viajante se regalava, em cada fazenda, com o delicioso perfume dos laranjais.”

A Serra da Sapateira hoje se denomina Serra do Sapateiro, com lenda a cercando. Da fato, do Morro do Gambá, tem-se bela visão do Rio Paraíba do Sul. Quem transita frequentemente entre Campos e São Fidélis de automóvel ou de ônibus nem nota este encanto, e os governos não têm qualquer interesse em transformar essa estrada, hoje RJ 158, em estrada-parque. A viagem de Campos a São Fidélis por terra era penosa e perigosa. Mais fácil subir o Rio Paraíba do Sul água até a redução indígena, onde um pequeno desnível do curso impede a passagem de embarcações de médio porte. A floresta e seus habitantes à margem do rio encantaram o príncipe, que a descreveu num relato típico do romantismo.

“Após atravessarmos agradável região cheia de aspectos variados, atingimos a fazenda do Colégio, já ao anoitecer; seguimos, porém, antes que ficasse completamente escuro, até o pequeno rio do Colégio, que éramos obrigados a transpor. Os cavalos e burros tiveram que deslizar por forte rampa, que a chuva tornara de todo escorregadia, e alguns rolaram por ela abaixo. Contudo, passamos sem novidade a profunda e rápida corrente, embora ficássemos completamente encharcados. Logo penetramos numa densa floresta, à margem do rio, que prosseguiu, durante légua e meia, até S. Fidélis. Era, então, noite fechada e a trilha, muito estreita, passando, muitas vezes, sobre a própria barranca íngreme do rio, era inóspita e obstruída pela galharia seca e as árvores tombadas. O soldado, que conhecia bem o caminho, cavalgava adiante, e constantemente apeava, com o nosso pessoal, para remover os obstáculos, o que nos obrigou, muitas vezes, a afastar os cavalos a boa distância. Chegamos, por fim, a uma brusca e profunda ribanceira, atravessada por estreita ponte constituída por três troncos de árvores. Puseram nela uma série de travessas, para garantir marcha mais firme aos animais; apesar disso, escorregaram em várias ocasiões; e alguns quase caíram. Com um pouco de paciência, conseguimos, felizmente, superar mais essa dificuldade. Nas sombras da floresta, esvoaçavam inúmeros insetos luminosos, gritavam curiangos, grandes cigarras se ouviam a extraordinária distância, e a estranha toada de um exército de rãs ressoava nas trevas noturnas da brenha solitária. 2Alcançamos, afinal, um campo à beira do rio, e achamo-nos de repente no meio das malocas dos índios Coroados de S. Fidélis.”

O objetivo maior do naturalista no norte fluminense tina sido alcançado. Ele e seus companheiros chegaram a “S. Fidélis, situada nas belas margens do Paraíba, que tem aí grande largura, é uma missão ou aldeia de índios Coroados e Coropós, e fora fundada, havia cerca de trinta anos, por frades capuchinhos vindos da Itália (…) Os habitantes indígenas pertencem às tribos dos Coroados, Coropós e Puris, esta ainda selvagem e vagante pelas vastas solidões situadas entre o mar e a margem norte do Paraíba, projetando-se para oeste, até o rio Pomba, em Minas Gerais (…) Esses três grupos indígenas “Cultivam mandioca, milho, batatas, abóboras etc. São caçadores desde a infância e hábeis no manejo dos reforçados arcos e flechas”.

A tese corrente na época, segundo a qual as línguas faladas em todo o mundo derivavam da Europa, foi refutada com argúcia por Maximiliano. Ele sustentou, então, que a semelhança entre palavras das línguas nativas com as línguas europeias não é suficiente para confirmar a tese, que seria absurda atualmente. Não deixa de ser uma atitude antieuropocêntrica.
Embora já consideravelmente aculturados, “As armas originais dos Coroados, e às quais ainda estão fortemente presos, são o arco e flecha, que só diferem das dos Puris em algumas particularidades”. Ele se refere a Aldeia da Pedra, atual Itaocara, que não chega a conhecer. Explica ele que “Outrora, esse povo (coroado) enterrava os chefes mortos em posição sentada, dentro de grandes vasos de barro, a que chamavam camucis, e banhava-se toda manhã, ao alvorecer; presentemente, porém, esses costumes foram abandonados.” 3Os missionários capuchinhos avançavam na ocidentalização dos nativos.
Chamou a atenção de Maximiliano a atual matriz de São Fidélis, construída alguns anos antes de sua visita. Ele observa que “A pintura interior da igreja não se podia, decerto, chamar de bela, mas era tolerável e constituía um grande ornamento nesse lugar remoto e quase deserto, surpreendendo agradavelmente o forasteiro.” Em grande parte, a matriz foi construída e decorada pelos índios cristianizados.

Contudo, Maximiliano queria mais. Ele desejava um encontro com índios puris, considerados ainda arredios e pouco aculturados. Para tanto, atravessou para a margem esquerda do rio, onde hoje fica Ipuca. Lá, deparou-se com “Sombrias, densas, altas florestas que se alternam com verdejantes colinas, que se abeiram do rio e nas quais existem numerosas fazendas. Em alguns lugares, essas matas imensas e românticas vão longe, acompanhando o rio, e se estendem, sem interrupção, pelo interior adentro. Do cume sobranceiro das montanhas, divisam-se, embaixo, vales umbrosos interceptando o ermo agreste, completamente cobertos pelos altaneiros gigantes da floresta, e cujo silêncio só de raro em raro é quebrado pelas passadas do Puri saqueador e solitário. Para trás da fazenda, subimos a um outeiro rochoso, donde contemplamos o mais deslumbrante e ao mesmo tempo solene dos panoramas dessas imensas solidões”.

Certas palavras em Maximiliano caracterizam sua vinculação ao Romantismo, como “sombria”, “romântica”, “sobranceiro”, “umbroso”, “ermo”, “altaneiro”, “silêncio”, “solidão”, “abandono”. Vivesse mais tarde, ele seria um simbolista. Mas não deixa de ser fascinante a forma como descreve as florestas que existiam na região e que foram derrubadas, tornando o terreno árido. Pela história, podemos ter uma pálida ideia de como era bela e rica a região serrana do Norte/Noroeste Fluminense. Finalmente o encontro com puris, já semiaculturados. “Demos-lhe facas, rosários, pequenos espelhos e distribuímos algumas garrafas de aguardente de cana, o que os tornou extremamente alegres e comunicativos.” Maximiliano e integrantes de expedição continuam com a prática de cativar índios com quinquilharias. Era a forma mais rápida de estabelecer contato amistoso, sem que se percebesse o mal feito aos nativos e o simbolismo que tais objetos tinham entre eles. Então, ele descreve o tipo físico do puri e a sua cultura com palavras e com desenhos. Em todo o trajeto entre os Rios Macaé e Itapemirim, São Fidélis foi o local que mais mereceu atenção e desenhos do príncipe.

4Por serem nômades, Maximiliano observou com justeza, quanto aos puris, que “Os índios abandonam tais moradias, sem saudades, quando a região circunvizinha não mais lhes garante alimento suficiente; deslocam-se, então, para outros lugares, onde encontram maior abundância de macacos, porcos, veados, cutias e outras raças (…) “Dizem que devoram, da mesma maneira (que os macacos), por vingança, carne humana; quanto, porém, a comer os próprios parentes falecidos, como derradeiro tributo de afeição, de acordo com o referido por alguns antigos escritores, não se encontra nenhum traço desse costume, pelo menos nos nossos tempos, entre os tapuias da costa oriental. Os portugueses do Paraíba afirmam, sem discrepância, que os Puris comem carne dos inimigos mortos…”

Ele notou que os índios mais puros culturalmente já haviam adotado o cachorro como animal domesticado, para ele, mais uma evidência da superioridade dos europeus. A grande surpresa sua foi encontrar um português solitário morando nas matas virgens habitadas pelos puris.
Em São Fidélis, “O Sr. Freyreiss entrou em negócio com um dos Puris para a compra de um filho, oferecendo-lhe diversos artigos.” As mulheres parecem ter protestado, mas a decisão coube a um ancião. Ele observa, então, a indiferença dos nativos em se desligarem dos filhos, como se desfizessem de coisas: “Essa empedernida indiferença em todas as circunstâncias, alegres ou tristes, se encontra na totalidade das tribos americanas. Alegria e tristeza não os impressionam muito; raras vezes riem, e é pouco comum falarem alto.”
Nota Maximiliano a insensibilidade dos puris com a crueldade, a dor e o sofrimento. Mas, prenunciando a etnologia, ele procura compreender o diferente.

A experiência que o levou ao comentário sobre a insensibilidade e a sua justificativa foi o abate de um porco pelos puris: “… tivemos oportunidade de observar com que crueza preparam os animais para comer. O leitão pastava perto de uma casa: um Puri avançou de mansinho e flechou-o muito alto, sob a espinha; o animal fugiu berrando, com uma flecha cravada. O selvagem, então, pegou uma segunda flecha e fincou-a na espádua do animal a correr e depois o agarrou. Enquanto isso, uma mulher acendera o fogo. Quando todos nós nos aproximamos, feriram de novo o animal, no pescoço, para matá-lo, e em seguida no tórax. Entretanto, ainda não estava morto; grunhia e sangrava profusamente; sem fazer caso dos berros, puseram-no vivo ao fogo para chamuscar-lhe o pelo, rindo-se gostosamente dos grunhidos que esses sofrimentos lhe arrancaram. Só depois que os nossos protestos contra a barbaridade se tornavam cada vez mais impacientes, foi que um deles avançou e enterrou uma faca no peito do torturado animal; no mesmo momento lhe rasparam o pelo e o esquartejaram.” Quem escreve é o príncipe e caçador, que, para enriquecer sua coleção de animais taxidermados, não hesitava em matá-los. Mas, logo a seguir, tenta compreender os índios:

“A crua insensibilidade é um traço predominante do caráter dos selvagens. É uma consequência necessária do modo de vida; pois é o mesmo que tornam o leão e o tigre sedentos de sangue. Além disso, são-lhe peculiares o instinto de vingança, um certo grau de inveja, e um indomável amor à liberdade e à vida nômade”.

Com relação à família, de certa forma Maximiliano desmistifica o bom selvagem, imagem que ainda hoje cultuamos. Chama-lhe a atenção a poligamia, na forma de poliginia, e o sexismo favorável ao homem: “Têm, em geral, muitas mulheres; alguns possuem quatro ou cinco, posto que as possam aumentar. De modo geral, não as maltratam, mas o marido considera a mulher como sua propriedade; tem que fazer o que ele ordena, e por isso anda carregada como uma besta de carga, enquanto, ao lado, ele apenas leva as armas na mão”. Estamos no século XIX, quando até na Europa predominava o sexismo. Mas, ele causa estranheza ao alemão. Quanto à religião, Maximiliano destoa da opinião europeia predominante, escrevendo: “… estou (…) convicto de que não há um só povo na face da terra destituído por completo de ideias religiosas”. Logo após, discorre sobre as crenças dos indígenas, concluindo, assim, que eles são humanos.

5De volta a Campos, rumo a São João da Barra, o naturalista anota que “O Paraíba (…) corre entre a serra dos Órgãos e a serra da Mantiqueira. O rio estava, então, na extrema vazante; mas na estação chuvosa, dezembro e janeiro, transborda e inunda grande extensão das margens”. Parece, então, que a bacia do Paraíba do Sul apresentava mais regularidade em suas cheias e estiagens, pois havia mais florestas e mais previsibilidade quanto às chuvas. Na volta pela margem esquerda do rio, a expedição encontra um fazendeiro com veleidades de naturalista, cujo sobrenome, Morais, foi anotado por Maximiliano. Este homem dispensava bom tratamento aos índios. Como último registro digno de nota na viagem de retorno, ele escreve que “penetramos, em seguida, numa sombria e majestosa floresta, onde voejavam lindíssimas borboletas”.

De fato, São Fidélis atendeu plenamente aos objetivos do naturalista, além de lhe proporcionar grande encantamento. Se voltasse lá nos dias de hoje, é de se crer que não reconheceria mais o lugar.

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